A maternidade é um acontecimento, uma ação da natureza que nos confere muitas habilidades, é verdade. Quando na vida eu iria imaginar que um dia seria capaz de saber, pelo cheiro da fralda da minha filha, se ela estava com dor de barriga, desarranjada ou então constipada e cheia de gases? Quando eu acreditaria que só de olhar para uma das minhas meninas na saída da escolinha num dia qualquer, e achar algo de estranho do tom da pele e no leve cheiro atípico do suor, que eu poderia mesmo antecipar o diagnóstico de uma gripe ou doençazinha infantil antes dos primeiros sintomas? Já me convenci, há 16 anos, que a maternidade é algo que extrapola todas as fronteiras da racionalidade e adentra um campo onde é puro sentido, puro instinto, onde explicações se fazem totalmente desnecessárias diante do intuitivo, do ímpeto primitivo, de tudo aquilo que a gente não sabe como sabe, mas só sabe que sabe. 

Mas, a maternidade me surpreendeu, não somente em me acender um lado animal que até então estava adormecido, mas também em explicitar de forma totalmente despudorada minha vulnerabilidade. Ao mesmo tempo que o amor materno recém desperto em mim, iluminava os cantos mais sombrios da minha alma, fazendo emergir coisas tão lindas que nem eu sabia que possuía dentro de mim, também me trouxe à tona medos que estavam tão bem guardados debaixo da cama e fez nascer outros tantos...

"Quem sou eu agora?" Me lembro de ter me perguntado várias vezes enquanto me encarava no espelho, entre um cochilo e outro, tentando achar um resquício sequer da Bruna que eu havia sido por toda a minha vida, até aquele momento. Eu não era mais eu, esqueça de mim, eu agora era a MÃE de alguém. Sabe o peso que isso tem? Eu era o mundo e precisaria ser a fortaleza inabalável desse novo ser humano, que não conhecia nada aqui desse planeta. Eu era a grande responsável por prover princípios morais e éticos, boas recordações da infância, sem traumas; a responsável por ensinar corretamente as palavras, as ações que se esperam de quem convive em sociedade, a calma, a paz e o exemplo a ser seguido. Eu sabia o que eu PRECISAVA fazer, só não sabia COMO faria. 

"Quem eu quero ser? Quem eu serei daqui pra frente?" Eram perguntas que eu não gostava de ouvir da minha mente, mas sabe, chega uma fase que a gente só tem a nossa própria mente para conversar, brigar, chorar, desabar. Mais ninguém no mundo parece ser capaz de compreender, de acolher, de simplesmente OUVIR. E como nos sentimos verdadeiras criminosas por ainda sermos humanas e estarmos sujeitas a sentimentos e padrões humanos, como raiva, cansaço, frustração, exaustão e com um super bônus de hormônios que não nos deixam ter paz, a gente também não confessa, para ninguém, nem para a melhor amiga, nem para a irmã e male male para nós mesmas. As pessoas vão me julgar, se eu já me julgo... Ou vou ouvir (como ouvi algumas vezes do pai das meninas) "Ué, não foi você que quis? Agora aguenta".  Desse jeito, nos fechamos em copas. Nós, nossos grilos, nossos medos, nossas inseguranças e nossas culpas. E quando damos por conta, estamos reclusas nesse mundo habitado por tantas vozes que não se calam, por tanto barulho interno e por um silêncio externo que grita muito alto, que joga na nossa cara como a maternidade é solitária.

Irônico dizer que a maternidade é solitária? Me lembro de ter o seguinte pensamento quando peguei o meu positivo: "Nossa, que incrível! Nunca mais estarei sozinha, terei sempre uma pessoinha ao meu lado!" o que eu não sabia, naquele momento, era que essa é a grande dicotomia materna: a solidão de quem nunca está sozinha. 

E puxa! Eu não fazia ideia de como ter sempre alguém ao meu lado me transformaria em alguém tão só. E o mais louco ainda: que desejava a solitude como um alcóolatra deseja a última dose da noite. Quando as visitas iam embora, quando as festinhas acabavam, quando as luzes se apagavam, enquanto todos dormiam, quando o marido saía para trabalhar, ou para pescar, ou para jogar futebol, quando a avó precisa ir viver a vida dela...a cada banho interrompido, a cada sonho abruptamente acordado, a cada ida acompanhada ao banheiro, a cada mamadeira noturna no pé ante pé, a cada rodada de TV desligada, a cada choro abafado pelo travesseiro, eu desejava ter apenas uns minutinhos a sós comigo. Mas *comigo*, eu e eu, sem a legião barulhenta que me massacrava impiedosamente dentro da minha cabeça. Que saudade de quando meus problemas se resumiam a não ter roupa para sair no fim de semana e a conseguir juntar grana para viajar no reveillon. Que saudade da leveza dos meus dilemas. Eu me mudei para o multiverso da maternidade, onde eu não tinha tempo, nem disposição para sair com as amigas (por onde elas andavam mesmo?), onde eu não tinha tempo nem disposição para cuidar de mim e onde realmente ninguém também me incentivava a cuidar de mim, apenas da minha filha. Ela era o centro absoluto desse universo e qualquer outra coisa que entrasse em órbita seria prontamente destruída. Temos que amar um outro ser incondicionalmente (sem sequer podermos nos sentir cansadas), mas precisamos esquecer completamente de nós. Essa é a cruel dualidade da maternidade. 

Tá tudo bem em abdicar dos projetos pessoais, dos sonhos, da vaidade, do autocuidado. Esse comportamento é até incentivado e aplaudido, vide a figura de Maria, mãe de Jesus, a mãe que só vive pelo filho, essa figura tão romantizada e idealizada há tantos séculos. Mas experimente voltar para a academia 20 dias depois do parto, tirar um dia para ir ao salão ou uma noite de vinhos e caipirinhas entre as amigas...experimente viajar num fim de semana e deixar o filho aos cuidados do pai ou dos avós ou de uma babá...experimente se priorizar, de vez em quando, só para variar. E verás que as fogueiras da inquisição continuam acesas. Para nós mulheres, claro. Para as mães então, nunca se apagaram. 

Por vezes eu só queria me lembrar de como era ser eu. De sentar para jogar conversa fora e dar umas risadas, como eu costumava fazer. De dormir e poder desligar. De fazer coisas que me fizessem sentir que eu estava, de novo, na minha própria pele; na minha própria casa. 

Enfim, 16 anos se passaram e vira e mexe ainda tenho que pular uma fogueira, mandar as vozes se calarem e me lembrar que eu sou humana e por tanto, falha. Vira e mexe ainda choro de saudade da casa dos meus pais e me dá uma súbita vontade de sair correndo, me trancar no meu quarto cor-de-rosa cheio de pôster de boyband e mandar minha mãe resolver tudo. Aí eu me lembro que eu sou essa pessoa, que EU sou a mãe agora e refaço minha configuração mental para voltar aos eixos.  E nesse costurar desalinhado, margeando sempre os dois extremos da maternidade, sigo até hoje. A maternidade continua solitária em alguns aspectos e meus medos também são adolescentes agora. Não posso dizer que me acostumei, mas sim que aprendi a conviver com a solidão de quem nunca está sozinha. 

Com amor,

Bruna