Dia desses, navegando pelo meu feed do Instagram, me deparei com um post que perguntava: “Se você pudesse voltar no tempo, o que diria para si aos 10 anos de idade?” e prontamente pensei “Eu diria: Bruna, não é culpa sua e você não pode salvá-la”.
Subitamente um nó se fez na minha garganta e foi impossível impedir que meus olhos se enchessem de lágrimas. Fiquei pensando nessa frase e como teria sido bom ouvi-la de um adulto na época. Se, ter alguém para me dizer isso aos 7 ou aos 10 anos, teria feito diferença em como vivi toda a minha vida. Essa resposta eu nunca terei, infelizmente, porque não tive mesmo 1 alma sequer para abraçar a Bruna da infância e explicar que a culpa pela tristeza infinita da mãe dela, pelos dias e dias que se seguiam com ela trancada no quarto, sem ver a luz do dia, pelos vexames em público, pelas brigas conjugais, pelos porres seguidos das infinitas crises de arrependimento, não eram culpa dela. Mas, sabem o mais louco nisso tudo? É que a Bruna de hoje, com 37 anos, também precisa dizer isso para si. Também precisa se lembrar, constantemente, que a culpa continua não sendo dela. E que a missão de resgate e salvação, também não. Pois ninguém pode salvar uma pessoa de si própria. Ninguém ajuda alguém que nem sequer percebeu que precisa de ajuda.
Ainda com o
nó na garganta, segui no diálogo com a Bruninha de 8 anos de idade, senti que
me devia isso.
“Minha
querida, você vai sobreviver a isso. Eu sou você do futuro e daqui a 30 anos as
coisas estão bem melhores, te garanto. Se bem, que você não vai esperar tudo
isso, aos 15, quase 16 anos, você vai sair de casa. Você vai se afastar desse
ambiente e vai conhecer pessoas legais, que te darão todo amor e suporte pelo
caminho. Mas hoje, preciso te dizer algo, para que você não demore quase 2
décadas para entender: A mamãe tem uma doença. Ela não faz essas coisas porque
quer, porque é ruim, porque não gosta de você, da sua irmã, do seu pai. Ela
precisa de ajuda profissional, de adultos que comprem a briga e se disponham a
cuidar dela, da forma como ela merece. Acontece, que para os adultos, muitas
vezes é mais fácil fechar os olhos e fingir que não está vendo, que é só uma
fase, que em breve tudo ficará bem. Os adultos têm muitos incontáveis problemas
e está cada um cuidando da sua própria vida, eles não têm tempo de olhar para o
próximo. Para uma irmã, uma tia, até mesmo uma filha, que é doente, que saiu do
esperado, que não é “perfeita” como eles gostariam. Então, ignorar se torna o
melhor caminho. Você não vai encontrar respaldo dessa família, pois eles já tentaram
ajudar do jeito deles e não conseguiram, então eles largaram de mão. Mas eu
quero que você tenha a noção de que você não nasceu para salvar a mamãe. Que
você tem direito a ter a sua própria vida e que o AMOR que você sente por ela,
não é suficiente para fazer com que ela enxergue que tem uma doença. Essa
doença é chamada de “dependência química” e ela vem seguida de uma depressão
crônica e transtorno de ansiedade generalizada. E, embora ela tome muitos
remédios, eles não ajudam em nada, eles só pioram. Não tem remédio que possa
resolver sozinho, Bruninha. Não permita que o seu Amor se transforme em
escravidão. Não abra mão de tantas coisas na sua vida para tentar resolver e
amenizar a dela. Não cobre atitudes e comportamentos que você gostaria que ela
tivesse, porque ela nunca terá. E, acredite em mim, ela faz o melhor que pode,
com os recursos que tem. Eu sei que você não guardará rancor no seu coração,
mas eu quero que você também se livre da culpa e da obrigação de viver por ela.
Os anos vão passar, a nossa mão sempre estará estendida, mas existe uma coisa
chamada “amadurecimento”, que é um processo pessoal, nós não podemos
interferir. Cada pessoa aqui na Terra tem a sua própria jornada de evolução,
tem suas dores, seus carmas e dharmas e por mais que a gente queira muito
ajudar, de todas as formas, nem sempre conseguiremos. Vai chegar o dia,
Bruninha, que você vai ter que deixa-la com as próprias escolhas. Que ela vai
ter que aprender o que seja que ela veio aprender nesse plano. Ela vai precisar
andar com as próprias pernas, pensar por si e resolver os problemas. Romper
esse ciclo, cortar o cordão umbilical, não vai ser fácil. Você vai ser julgada
por pessoas que não fazem a menor ideia do que você passou a vida toda. Mas tá
tudo certo, julgar faz parte do ser humano. Você vai sentir raiva várias vezes,
vai se sentir impotente, inútil...mas essa é a parte do *seu* processo de
amadurecimento, é o seu dharma, o seu carma, o seu caminho para a evolução. Não
se pergunte por que você, o que você fez de errado, onde deixou a desejar.
Nada, absolutamente nada que você fizesse ou deixasse de fazer surtiria algum
efeito diferente. Vai brincar. Vai ser criança, Bruninha. Você não é a mãe da
sua mãe.”
Talvez esse
seja o texto mais difícil que eu já escrevi, mas se para a Bruninha da infância
eu me devia essa conversa, para a Bruna atual, eu me devia esse texto, porque
tenho um pacto comigo, de sempre escrever minhas verdades para tentar ajudar outra pessoa que passe por coisa semelhante e não quero quebra-lo.
Resgatei
várias memórias da minha infância nessa viagem ao passado, algumas ótimas,
outras péssimas. Me lembrei de quando fazia a Nilde (minha mãezinha do coração,
que Deus mandou para trabalhar conosco em casa) ir comigo até uma loja que
ficava a umas 2 quadras, porque eu queria pegar a minha mesada e comprar um
presente pra minha mãe. Eu sempre fazia isso, todos os meses, sem falta, eu ia
nessa lojinha e comprava o que pudesse. Na esperança do presente animá-la,
fazê-la sair do quarto, fazê-la sorrir. Eu não entendia porque ela era tão
triste, porque ela se maltratava tanto, porque às vezes ela bebia tanto até
passar mal, se ela dizia que nos amava mais do que tudo. De onde vinha tanta
infelicidade, amargura, desespero? Se ela tinha a mim, meu pai, minha
irmã...uma casa, uma família estruturada, acesso aos melhores colégios a vida
toda, irmãos, pais presentes....eu demorei muito tempo para entender que ela
era doente. Que não era culpa de ninguém. Porque ninguém falava disso naquela
época. As pessoas só se afastaram. E acabaram me afastando junto.
Hoje eu sei
que até chegarem nesse ponto sofreram muito, tentaram muito, foram puxadas para
o buraco negro onde a alma da minha mãe vivia. E que elas também tinham suas
famílias, seus problemas, suas vidas. Eu também precisei fazer isso num certo
ponto da minha vida. Era eu ou ela. Era a minha sanidade, a minha saúde, o meu
equilíbrio ou a loucura, a tristeza, a doença e a negação dela. Não quis deixar
a Bruninha triste e contar que a mamãe nunca na vida aceitou ajuda de bom
grado, que ela sempre acreditou que o mundo fosse o problema, que os outros
eram sempre os culpados, os grandes vilões do complô armado, não ela. Eu não
contei para a Bruninha que todo aquele exagero e exacerbação eram uma
co-dependência emocional imensa da parte dela, que se transformaria numa quase
obsessão pois na cabeça dela, a Bruninha era a única pessoa que não poderia ir
embora e deixá-la, aos 8 ou 10 anos de idade. Que ela se agarrava com unhas e
dentes no carinho, no cuidado e na carência que a Bruninha tinha e dessa forma,
ela sugava e vampirizava sem ao menos perceber o quanto tóxica estava sendo. Mas de qualquer forma, a Bruna de hoje
agradece essas lembranças. Só quem passa por esse tipo de experiência dentro da
família é que sabe, como pode ser solitário, frustrante e dolorido. Como é
imensamente exaustivo. Como é horrível ser digno de pena das outras pessoas,
como desenvolvemos uma autopiedade corrosiva se não estivermos atentos. Como é
a sensação de ser julgado por simplesmente estar cuidando da própria vida um
pouco. Como são os ciclos infinitos de repetição: Crise, ápice da crise,
promessa de tratamento, início de tratamento, abandono de tratamento, crise. E
recomeça. E recomeça. E recomeça.
Minha mãe
não foi a pior do mundo, longe disso. Ela sofre muito porque ela sente muito.
Ela sente o mundo de uma forma que eu nunca conseguirei entender. E o peso da
própria existência já é uma terrível punição. Viver sempre foi um fardo pesado
para ela. Por mais que eu tenha tentando suaviza-lo e que eu tenha me
abandonado por muito tempo e aberto mão de coisas e pessoas que eram
importantes para mim, para poder estar ao lado dela, tentando equilibrar todos
os pontos da vida dela.
Honro a vida
dela, honro a luta dela. Valorizo cada vitória dela. Inclusive, minha dedicatória
do meu primeiro livro, foi para ela. Ela é uma fênix. Estarei aqui sempre para
ela, mas hoje me permito escolher a mim e priorizar a família que nasceu de mim. Me
permito dizer NÃO. Não mamãe, dessa vez eu não vou, eu não quero, eu não posso.
E percebi, da forma mais dolorosa que existe, que se amamos alguém, precisamos
deixar esse alguém crescer. Errar, aprender com os erros, arcas com as
consequências das próprias escolhas. Isso não é ruim, não é abandono, não é
maldade. É saudável, acredite. Parte inseparável da vida.
Se você
passa por algo parecido com a minha história, saiba que as culpas não são suas.
Nem da pessoa. Nem das outras pessoas. Pois não existem culpas. E você pode, você
tem o direito de ir viver a sua vida e escrever a sua história. O Amor é o
amor, não uma obrigação e a gratidão não pode jamais ser uma moeda de troca ou
uma coleira. VIVER não é um crime. Podemos amar alguém, nos preocuparmos e
ajudarmos esse alguém, sem destruirmos a nós mesmos. Lembre-se disso. Preserve os seus limites.
Mãe, eu te amo. Sou grata por você ter me dado a vida. Andaremos sempre de mãos dadas, mas cada uma no seu caminho, como tem que ser. Afinal, eu não nasci para salvar você.
Com amor, Bruna (e
Bruninha).
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